Jornalismo, "vôo cego" e ficção

Samuel Lima (*)
Depois de inventar a "quase-notícia", na cobertura da crise do transporte aéreo, o jornalismo da TV Globo parece chegar, finalmente, ao território da ficção. À frente da empreitada, sempre ele: o jornalista Valmir Salaro.
No programa "Fantástico" (10/12/2006), o repórter embarcou num jatinho particular, da base de Brasília, em direção aos céus da Amazônia. A missão: achar o "ponto negro", no local da tragédia do avião da Gol.
Antes de discutir o caso, considero o clichê "apagão aéreo" uma desonestidade, jornalística e política. Em termos jornalísticos, trata-se de um exemplo típico de "redução", compreendido como mudança de contexto de uma informação com o propósito de lhe atribuir valor estranho à verdade factual. Politicamente, é uma desesperada tentativa de pespegar no atual governo o selo de "apagão", no caso o elétrico, de longe o maior insucesso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
A reportagem de Salaro durou exatos 7 minutos e 20 segundos. Sua tese central: provar que a colisão que matou 154 pessoas foi obra da existência de um "ponto cego", na rota percorrida pelo Legacy, isentando assim os pilotos norte-americanos.
Esgrimindo a presunção de culpa, como fundamento implícito, o locutor faz a chamada com a gravidade que caso exige. "Exclusivo: o Fantástico foi ao ponto cego do espaço aéreo brasileiro". E lá se foi Salaro, acompanhado de um piloto profissional, Fadi Yunes.
Vejamos alguns trechos:
(a) "Essa é uma região complicada para voar, por falta de comunicação. Muitas das vezes a gente não consegue obter contato", explica o comandante do jato Premier, Jerônimo Henrique da Silva;
(b) "Os pilotos do Legacy, que esta semana voltaram aos Estados Unidos, alegaram em seus depoimentos que tentaram por várias vezes chamar o controle de Brasília, em vão", diz o jornalista.
E o contraditório? Utilizando um áudio de uma suposta conversa do ex-comandante do Espaço Aéreo Brasileiro, Brigadeiro Vilarinho, o repórter lhe confere 15 segundos para explicar: "É extremamente importante. Isso é grave. Sem radar você ainda controla, sem freqüência você não faz nada".
Na parte final, Salaro começa a tropeçar naquilo que o jornalista Mino Carta chama de "verdade factual", ou seja, o núcleo indivisível da notícia. Vejamos mais alguns pontos:
(a) No vôo realizado pelo Fantástico, "as freqüências de rádio não chegaram a falhar, mas ficaram cheias de estática em alguns trechos". Na opinião de Yunes, "De 1 a 5, está uma clareza 2";
(b) "Até entrar na região controlada por Manaus, o avião não aparece nas telas do radar. Fiquei uns seis minutos sem contato com o radar", explica o comandante do jatinho.
A última informação de Salaro contradiz todo o enunciado da reportagem: "Mas, o comandante Jerônimo fica satisfeito, pois o rádio continua funcionando". Ele força a barra com o piloto: "Isso parece loteria (ou seria roleta-russa?) então?". Ao que o comandante Jerônimo Henrique da Silva se limita a dizer: "É, um pouco complicado".
A reportagem do "Fantástico" repercutiu, em vários noticiosos da emissora durante a semana. Há, contudo, um caso emblemático que mostra com clareza ímpar o descasamento entre essa espécie de "jornalismo ficcional" e o compromisso com os fatos. No "Jornal Nacional" (edição 13/12/2006), a chamada da matéria é categórica: "Ministro da Defesa admite buraco negro". O texto, a seguir, anuncia: "Ao falar sobre o acidente entre o boeing da Gol e o Legacy, o ministro da Defesa admitiu, pela primeira vez, a existência de pontos cegos na cobertura do radar". Porem, quando Waldir Pires fala, este enunciado vira pó: "A maioria dos técnicos me dizem que buracos negros não são reais e que eles flutuam de acordo com as condições atmosféricas".
Ou seja, mesmo a principal fonte chamada negando e oferecendo outra explicação, a "quase-notícia" da TV Globo mantém sua "verdade sobrenatural", num clima de exacerbação e de escândalo que desinforma a sociedade.
O Prof. Venício Lima (UnB) faz o alerta: "Ao praticar um denuncismo vazio, a mídia brasileira tem acusado e condenado publicamente, sem o devido julgamento, tanto pessoas como instituições, desempenhando assim, indevidamente, uma função específica do Poder Judiciário". A observação se aplica ao caso, perfeitamente.
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(*) Santareno, é jornalista, doutor em mídia e teoria do conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenador do Curso de Jornalismo do Bom Jesus/IELUSC.
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