Ferida que não cicatriza

Advogado, 41 anos, Walmir Brelaz lançou há pouco dias em Santarém o livro Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás. A obra dá voz aos que conseguiram sobreviver ao episódio mais sangrento da história recente da reforma agrária do Pará.

“A lembrança muito viva que eles têm desse episódio me impressiona. Eles contam suas experiências como se o massacre estivesse ocorrido ontem, e dificilmente seguram as lágrimas”, conta Brelaz em entrevista ao blog.

O massacre completou 10 anos em abril passado. Com ligações aos movimentos sociais e ao PT, Walmir Brelaz conta que, na fase de pesquisa para o livro, conseguiu um dado praticamente desconhecido sobre o episódio: o número exato de feridos. Ele constatou que o mínimo de pessoas feridas era 75, e não 69 como estava sendo propalado.


Quanto tempo o senhor levou para concluir essa obra?
Como o livro é fruto de minha dissertação de mestrado em Direito, foi escrito durante aproximadamente três anos. No entanto, por ser advogado dos sobreviventes do massacre, desde 1998 posso te dizer que eu já estava colhendo informações sobre o caso.


Nos depoimentos dos sobreviventes, o que mais lhe chamou atenção?
A própria história deles já é algo chocante. A maioria é de fora do Pará. Pessoas que para cá vieram atraídas por promessas de políticas públicas oficiais de ocupação da Amazônia, deixando suas famílias nos Estados de origem, principalmente do Maranhão, e logo se deparam com o abandono do poder público. Estavam sem emprego, sem terra, sem qualquer assistência à saúde, à educação, previdenciária, enfim, vivendo à margem da sociedade. Depois do massacre, percebi o desespero dessas pessoas, agora com problemas de saúde. A lembrança muito viva que eles têm desse episódio me impressiona. Eles contam suas experiências como se o massacre estivesse ocorrido ontem, e dificilmente seguram as lágrimas. A exclusão social que são vítimas eu notei ainda mais no momento das entrevistas. Alguns não sabiam informar nem sequer a data do próprio nascimento e não tinham informações de suas famílias há muitos anos. Por outro lado, a vontade de lutar por seus direitos é algo que eu considero positivo.



Nessa fase de coleta de depoimentos, de documentos, o senhor conseguiu encontrar alguma informação inédita, que ainda não tivesse sido publicada ou revelada?
É bom que se diga que os sobreviventes viviam reclamando de que nunca foram ouvidos oficialmente. Que no processo criminal jamais foram chamados para dar seus depoimentos. Portanto, as histórias que contam com tantos detalhes de certa forma já é algo inédito. Em termos mais específicos, posso destacar o número oficial de feridos. Até nosso trabalho, 69 era o número contido no processo criminal, mas constatamos que são no mínimo 75 pessoas.


O massacre é um marco na história do Pará no tocante à reforma agrária. O senhor acha que mudou alguma coisa nesses dez anos em relação a essa questão?
Essa é um tipo de questão que pode ser observada, mesmo que de maneira simplista, por números. De acordo com estudos da Comissão Pastoral da Terra, em 1996 (data do massacre) houve 653 conflitos de terras e 46 pessoas assassinadas. Com o tempo esses números foram crescendo. Em 2003, foram registrados 1.335 conflitos e 73 assassinados. Só podemos concluir, e lamentar, que a situação continua na mesma.


Quem são, afinal, os verdadeiros culpados pelo massacre?
Nesse massacre, houve os executores e mandantes. Os 155 policiais militares que participaram daquela operação são os executores, que partiram para a “curva do S” com o sentimento de que poderiam cometer aquele crime. Sobre isso posso dá três exemplos: primeiro, eles retiraram as tarjas de identificação; segundo, não fizeram as cautelas ao retirarem as armas; e terceiro, os laudos periciais identificam que no mínimo dez sem-terra foram executados a queima-roupa. É por isso que eu afirmo: o massacre era previsível, possivelmente premeditado e cometido com extrema crueldade. Mas eles também estavam cumprindo ordens superiores, inclusive do então governador Almir Gabriel, que estava ciente da grave situação daquela região. Veja só: o governador foi avisado desse clima de guerra pela própria Polícia, por vários deputados, por trabalhadores rurais e por fazendeiros. E o governador simplesmente determinou a desobstrução da pista a qualquer custo. Ora, se ele era o chefe maior da Polícia Militar, se deu a ordem para atacar, tudo leva a crer que é um dos culpados pelo massacre.


Acredita na punição deles?
Claro que não. Faço aquela velha, mas sempre atual pergunta: tu já viste ricos e poderosos irem para cadeia aqui no Brasil? Além do que a impunidade nesse caso já é algo concreto. Dos 155 policiais que participaram do massacre, apenas dois oficiais foram condenados, e mesmo assim ainda se encontram em liberdade. E isso, depois de dez anos. Quer mais?


Como surgiu o seu interesse pelo episódio?
Mantive contato com os sobreviventes dois anos depois do massacre. Fui indicado pelo deputado [federal] Babá. Diante dessa situação, eu apenas quis ser solidário. Dar a minha parcela de contribuição. Como cidadão, eu já estava revoltado com essa situação. E como advogado achei que poderia fazer algo, processar o Estado e denunciar esse crime bárbaro, mas felizmente eu sou apenas um entre centenas de pessoas que ajudam nesse caso.


Além da impunidade, o que mais lhe causa indignação no massacre?
Realmente, a impunidade vem em primeiro lugar. Ela é conseqüência e causa da violência agrária no Pará. Também me revolta muito a situação que passa os sobreviventes do massacre. Hoje, depois de dez anos, com várias decisões judiciais determinando ao Estado que efetue o tratamento médico a essas pessoas, e ainda encontrarmos sobreviventes sofrendo, com balas alojadas em seus corpos, com infecções, com dores por todo o corpo, isso tudo me faz sentir tão vazio. O mais grave é que acontece no Brasil, um país que adota na Constituição Federal praticamente todos os direitos humanos reconhecidos internacionalmente.


Vivemos problemas semelhantes aqui na região em decorrência do avanço da soja. O senhor acredita que se está criando, aqui, as condições para um novo massacre do Carajás?
Não tenho informações suficientes para fazer uma análise conclusiva sobre o caso. Mas percebo que há dois interesses antagônicos que, se não houver a intermediação enérgica do poder público, pode ocasionar a violência. Com a ausência do Estado, e com isso quero dizer União, Estado e municípios, incluindo o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário, sobram apenas os “sojeiros” e os “ambientalistas”, que se valem principalmente de questões imediatas e emocionais que temperam suas convicções ideológicas e econômicas. Mas, outro crime das proporções do massacre de Eldorado do Carajás acredito que não vai acontecer. Assim espero.


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Serviço:
O livro Os sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás pode ser adquirido em santarém na livraria BMT, na avenida São Sebastião, ao preço de R$ 25,00. Todo o valor arrecadado com a venda será revertido em favor dos sobreviventes.

Comentários

Anônimo disse…
Será que se os policiais não tivessem se defendido, hoje não estaríamos discutindo a chacina deles? O livro me parece que só fala de um lado, por isso acho que é um "papagaio penso".
Anônimo disse…
Você deveria ler o livro. No próprio site da ORM (como dica de leitura)o livro recebeu destaque justamente porque traz, inclusive, a versão dos policiais.
Anônimo disse…
Tente ler o livro. O portal ORM ao indicá-lo para leitura, o fez porque abordava, inclusive, a versão dos policiais.