Artigo

Sairé: lembrança do Grande Carnaval Amazônico?


Manuel Dutra (*)


Em maio de 2001 escrevi o artigo que segue para um site de vida efêmera. Com umas poucas alterações, reproduzo-o aqui, aproveitando o período de realização da festança. Desculpem se o texto é um tanto longo:

"Associado, como folclore, à vila de Alter do Chão, no Tapajós, bem perto de Santarém, muitos imaginamos que o Sairé seja uma coisa dos nossos dias apenas, uma festa engendrada por "caboclos", palavra esta com que todos nós, caboclos ou não, nos depreciamos uns aos outros.

Em 1972, fiz uma reportagem para O Liberal, tentando mostrar que a festa não era assim só coisa de hoje. Aliás, hoje guarda cada vez menos elementos do passado, agora já inclusive mixado (para usar essa palavra das tecnologias do espetáculo que a tudo absorve) a uma briga de dois botos, coisa que nada tem a ver com a originalidade do Sairé. Não faz mal que inventem brigas de boto, de bois e do que mais seja. A vida cultural é dinâmica, como a sociedade. Mas não se pode misturar impunemente as coisas, sobretudo quando se trata de aspectos de uma manifestação cultural tão antiga.

No Primeiro Congresso Brasileiro de Folclore, há 50 anos, o amazonense Nunes Pereira mostrou como o Sairé era uma festa que envolvia toda ou inúmeras partes da Amazônia, e de sua exposição saiu o livro "O sairé e o marabaixo: tradições da Amazônia" (vale mais como fonte bibliográfica). Em localidades do Pará, do Amapá e do Estado do Amazonas, e com destaque para a região do Tapajós, por quase toda parte se praticava a dança em certas épocas do ano. E esses registros estão em diversos autores.

Diz Nunes Pereira que as tradições do Sairé e do Marabaixo chegaram até nossos dias (já apreciadas como folclore), provindas de "três fontes de emoção e de religiosidade, do conquistador luso, do escravo negro e do índio animista e curioso".

A ordem dessas "três fontes" de Nunes Pereira pode ser invertida, e mesmo retirado o negro, ao menos se quisermos entender a origem e a prática de algo parecido com o Sairé nos primórdios da colonização, já que de antes da conquista não há registros. Tudo indica que era uma festa dos grupos nativos a quem o europeu chamou de índios que, em certas épocas do ano faziam imensos festivais, aliás em nada diferentes de todos os povos.

De fato, como se verificava entre as classes populares européias da Idade Média, ocorriam grandes festivais entre os grupos indígenas já missionados dos primeiros momentos da colonização. Na Amazônia, embora ainda merecendo estudos substanciais, o Sairé é concebido por alguns autores como resultado de uma imposição cultural do missionário no sentido de "cristianizar" aquilo que o colonizador poderá ter associado à carnavalização medieval, em que massas populares tomavam os espaços públicos, ora com permissão, ora sob repressão da hierarquia da igreja e do estado.

O escritor paraense José Veríssimo, referindo-se à manifestação a que assistira em Monte Alegre, em 1876, classifica o sincretismo do Sairé como pertencente a uma "ordem de crenças a que pudéramos chamar de católico-tupis". Tais resquícios, já no final do século XIX, seriam reminiscências de uma forma de negociação entre conquistador e conquistado, tornando possível a permanência de elementos das festas tribais originárias.

Segundo Veríssimo, uma das características das cantigas era a monotonia e a tristeza, a que ele chama de "melopéia triste, monótona e rouca".

Nada simpático a tais manifestações de grupos inferiorizados, Veríssimo coloca-se na posição dos detentores da cultura oficial, dominante, ao deplorar "o caráter pouco religioso" dessa "tão popular festividade amazônica", a cuja extinção gostaria de assistir, igualmente como "a pomposa e célebre solenidade paraense de Nossa Senhora de Nazaré - cuja extinção ardentemente desejo, para honra da nossa civilização", afirma, referindo-se à festividade do Círio.

Portanto, há mais de cem anos o Sairé foi, de certo modo, comparado ao Círio.

No início da década de 1970, quando a festa foi restaurada, como folclore, em Alter do Chão, tanto pela manifestação em si como pelos relatos de moradores idosos do lugar, percebia-se uma nítida relação entre o profano e o religioso, embora se tratasse, já naquele momento, de simples memória do que teria sido a festa em seu sentido primeiro, uma lembrança possivelmente muito distante do que foram as festas tribais de períodos anteriores à chegada do europeu.

O Padre João Daniel, que viveu no Pará, em seu livro escrito numa cadeia portuguesa, intitulado "Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas (1776) informa que, no meado do século XVIII, algumas missões ainda toleravam os festivais, já permeados de elementos culturais do conquistador, como "devotas cantigas" aos santos. Outras missões já o proibiram em virtude do que o autor classifica como exageros, entre eles as bebedeiras e posteriores desavenças.

Característico da negociação é a presença, no Sairé sincrético, de um personagem chamado de "juiz", que vai atrás do cortejo, com ar "grave" e rodeado de mordomos solenes. O sentido desse juiz diz bem do universo cultural do colonizador. Significa aquele a quem cabe julgar, manter a ordem, condenar. Evidente aviso aos grupos submissos: não se excedam, caso contrário... pode cessar a permissão.

Houve missionários que, por "zelo", nas vésperas do início dos festivais, "acompanhados de alguns oficiais" iam por toda as casas das povoações quebrando recipientes e objetos utilizados na festa. Daniel revela que tais atitudes tinham, como efeito, "agoar-lhes as festas, porque [os índios] se melancolizam e vão meter-se nos sítios. Outros escondem as talhas [com as bebidas] no mato, com que sempre solenizaram a festa".

Tamanha agressão cultural chegava, em alguns casos, a levar os índios a ameaçarem os missionários, reações tópicas e ineficazes diante da dominação totalitária a que foram submetidos.

Referindo-se ao processo sócio-religioso da colonização, Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, opina que, sob a influência jesuítica, "a colonização tomou rumo puritano", porém, sufocando "muito da espontaneidade nativa: os cantos indígenas, de um tão agreste sabor, substituíram-nos os jesuítas por outros, compostos por eles, secos e mecânicos; cantos devotos, sem falar em amor, apenas em Nossa Senhora e nos santos.

De fato, ao passar por Serpa, hoje Itacoatiara, em 1849, Henry Bates descreve o Sairé como uma festa permeada por um hino monótono e plangente na língua tupi. Já não podia ser de outra forma, o cantar triste nada mais era do que o resultado já bi-secular da brutalidade com que os índios tiveram devastados os valores simbólicos e materiais de sua cultura.

"Fui informado - diz o autor - de que o Sairé seria um engodo de que se tinham servido os jesuítas para levarem os selvagens até a igreja", porém o que informaram a Bates não foi o engodo histórico que determinou a relação branco-índio. Aqui se tratava, segundo o autor, da utilização de espelhos que adornavam o semi-círculo chamado Sairé.

Atraídos pelos espelhos, os índios viam neles poderes mágicos, associando-os ao missionário e a sua pregação.

Seguramente uma festa inteira triste por ter-se tornado insuportável ao colonizador, por revelar a liberdade de um povo que não singularizava o próprio corpo, parte do mundo exterior, do ambiente, do cosmo. No contato colonial, isso chocava profundamente o racionalismo europeu que, como na Idade Média e no Renascimento, desprezava os festivais populares nos quais o corpo, na cultura popular, tinha significado totalmente distinto do que representava na cultura patrocinada pela Igreja e pelo Estado.

Preconceituoso com os índios, acrescenta Freyre: "Entre os caboclos ao alcance de sua catequese [os missionários] acabaram com as danças e os festivais mais impregnados dos instintos, dos interesses e da energia animal da raça conquistada, só conservando uma ou outra dança, apenas graciosa, de columins" (crianças).

Na região amazônica, de fato, os missionários suportaram até determinado momento os festivais adultos até fazê-los refluírem, substituídos por festas de crianças, forma encontrada pelo colonizador para fazer desaparecer o riso do índio, um riso que fazia o missionário chorar, como descreve o Padre João Daniel.

Na Europa medieval e renascentista, de onde provinha a cultura do colonizador, também o riso popular dos festivais espontâneos chocava a séria cultura oficial, por simbolizar a liberdade de grupos que não separavam o riso do cotidiano que costumavam transformar em festa e riso.

Há muitas informações esparsas sobre o Sairé, incluindo as controvérsias sobre a origem do nome da festa, nome que, ao que tudo indica, designava o semi-círculo que era levado nas "procissões".

É quase certo, no entanto, que esse nome é posterior à chegada do conquistador. Mesmo após esse período, os imensos festivais indígenas ainda configuravam algo que se poderia chamar de um grande carnaval amazônico, embora com a manifestação realizando-se em épocas diferentes em cada aldeia, sendo festivais que envolviam a comunidade inteira.

Sobre as festas "indígenas" há referências em muitos autores, de Bettendorf, que em 1661 fundou a missão jesuítica do Tapajós (futura Santarém), a João Daniel (1776). Este detalha, inclusive, como era o hábito paraense de tomar tacacá há mais de 200 anos. Há diversificadas fontes que podem ser pesquisadas, em Galvão (Museu Goeldi), há alguma coisa em teses na UFPA.

Câmara Cascudo também aborda o tema.

Embora sem uma obra de referência básica, o Sairé é encontrado aos nacos em muitos autores. Seja com que nome for, as festas dos primeiros habitantes da Amazônia podem ser pesquisadas por quem se interessa em ter uma idéia de como era a vida dos primeiros habitantes da Amazônia, com certeza muito mais felizes antes de terem suas vidas e sua cultura destroçadas pelo mercantilismo predador do invasor europeu. O assassinato em massa de muitos povos que habitaram a Amazônia pré-conquista coincide com o assassinato de suas imensas festas tribais".

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* Jornalista e professor da UFPA. É doutor em Comunicação.

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