Artigo

Curtir os botos e deixar o Sairé em paz

Frei Florêncio Vaz (*)


Como resgatar a tradição e fazer o Sairé voltar às origens? Como tornar o festival dos botos mais espetacular e atraente aos turistas? Será possível uma única resposta para perguntas que perseguem objetivos tão antagônicos? Até aqui tem sido difícil. A experiência destes quase dez anos mostra que no embate Sairé X botos, tem um lado perdendo feio. Então, qual a saída?

Desde 1998 tenho participado da festa em Alter do Chão, tanto como devoto (nas ladainhas e folias tradicionais), como expectador dos botos. Vi o evento se transformar e entrar definitivamente na agenda do cidadão santareno, e atrair um número cada vez maior de pessoas. O Sairé é um sucesso. Mas, qual Sairé?

Apesar do discurso de que as mudanças nos anos 90 revalorizaram uma tradição de mais de 300 anos que estava desaparecendo, a impressão que fica para qualquer observador mais atento é que na verdade o Sairé está sufocado e morrendo.

A imagem mais divulgada pela propaganda oficial e pela mídia é sempre o conhecido símbolo tradicional colorido carregado pela Saraipora, numa procissão, com os idosos e seus tambores e os mastros. Ao lado da foto do cartaz de 2004 estava escrito que "não existe festa igual a esta, nem com outro nome" (tentando negar o óbvio). Seria de se supor que a maioria dos visitantes vai a Alter do Chão atrás desse lado "tradicional" do Sairé. Mas na verdade o número de pessoas que participa dos rituais religiosos tradicionais é muito reduzido.

Ano passado em uma das noites, na "barraca da santa", além dos foliões, festeiros e cantoras de ladainha, havia apenas 22 pessoas. Grosso modo, concluí que sete eram cinegrafistas, repórteres de TV e fotógrafos, oito eram de Alter, cinco de Santarém e dois que pareciam estrangeiros. Os nativos, que deveriam estar ali reavivando o sentido da tradição, estavam trabalhando nos bares ou se preparando para as apresentações no Sairódromo.Os visitantes estavam mais interessados em cervejas, Tucuxi, Cor de Rosa e no show de uma banda "de fora".

Enquanto as senhoras cantavam a ladainha, uma repórter de TV entrou no meio da reza e começou a gravar, falando alto: "Este é um dos momentos mais sagrados do ritual do Sairé, que acontece todos os anos..." Tão sagrado que podia ser assim tão profanado? Bem, importa vender a "imagem" e atrair turistas. E os nativos, com seus hinos que atravessaram séculos, viraram imagens. A parte religiosa da festa, que é de fato o Sairé, parece apenas um simulacro e pouco atraente para a maioria - muito longe do anunciado na propaganda.

A "revitalização" da festa através da disputa dos botos, longe de ir às tais "raízes", na verdade está matando o Sairé, que virou apenas gravura para os cartazes e as chamadas promocionais na TV. Não se pode negar que o centro da atração dos muitos visitantes é o espetáculo dos botos, os shows de bandas populares e toda a agitação típica desse arraial. E isso em si não é ruim. A questão é outra.

Note bem: a festa toda é muito bonita, fruto da criatividade de artistas e do trabalho de muita gente, e conta com a adesão dos santarenos. Claro! Tanto que naqueles dias a cidade fica quase vazia. Não estou contra este tipo de festa. Faz parte de uma tendência na cultura atual, dos grandes eventos de massa, com muito efeito cenográfico, de cores, sons e algo de "tradição". O Boi de Parintins e as tribos de Juruti são exemplos. O espetáculo chegou e ficou. Em Alter, ele ficou justo em cima do Sairé. Aí é que começou o problema.

O Sairé não é espetáculo. Pertence a uma outra categoria de manifestação cultural, as "festas de santo" - que não são as festas católicas de santo padroeiro. Se os botos são a moderna homogeneização via indústria cultural, o Sairé é a singularidade de um povo e um local. Não podia dar certo esse casamento.

Na sua dissertação de mestrado em Serviço Social, apresentada na UFPa, Gicele Ferreira mostra que atualmente os nativos de Alter se sentem alijados das tomadas de decisão sobre a festa, vêem as danças tradicionais sendo ofuscadas pelos grandiosos carros alegóricos e pelas coreografias dos botos e que os símbolos também perderam muito da sua força. Se antes das últimas mudanças eles eram participantes, hoje se sentem mais expectadores. E precisam se conformar com a "varrição" da festa, quando os visitantes já foram embora e eles não têm mais que trabalhar como vendedor, garçom, carregador ou cozinheira. É o Sairé desses nativos que está morrendo.

Li nos jornais que os representantes dos botos e a comissão organizadora da festa não concordaram que o festival folclórico seja separado do Sairé porque isso seria o "fracasso da festa", uma vez que haveria uma fuga em massa de turistas.

Vamos desfazer os exageros. Como já ficou claro, a maioria dos visitantes não vai a Alter atraída pelo Sairé-tradição, vai para o festival dos botos. Então, mesmo com a separação, eles continuarão indo. Os botos não precisam temer esse "fracasso" anunciado, pois já estão consagrados. Se precisaram um dia do Sairé com "ç" para se firmar, agora têm brilho e vida própria.

E essa apocalíptica "massa de turistas" a fugir só existe na mente desses senhores. Eles não fugirão porque nunca chegaram. Ora, deixemos de pavulagem, a verdadeira massa que invade o festival é formada por santarenos e moradores dos municípios vizinhos. E nós não fugiremos - garanto!- pois nossos parcos salários não permitem ir muito longe. Há turistas, é claro, mas são minoria.

A título de ilustração, cito a experiência da festa da Irmandade da Boa Morte, na cidade história de Cachoeira, próximo de Salvador (BA). É uma tradição religiosa de séculos de existência, comandada por mulheres negras e idosas. Os festejos, que incluem esmolação, procissão, samba de roda e comidas afro, eram realizados de 13 a 15 de agosto. Mas, para atender o movimento turístico, o calendário foi mudado, de forma que coincidisse sempre com um final de semana. A festa ganhou destaque na mídia e muitos visitantes.

Mas faz dois anos, as senhoras da irmandade resolveram retomar a festa nos seus dias tradicionais, não importando se cairia ou não em fim de semana. Por que fizeram isso? Elas disseram: para acabar com a "descaracterização da festa pelos comerciantes e pelo poder público municipal". Coincidência, não é? Agora, quem quer a secular festa da Boa Morte vai lá nesta data, e quem quer axé.

Assim, seguir a tradição do Sairé e manter a grandiosidade dos botos, de modo a atrair sempre mais turistas, são interesses incompatíveis, pela própria lógica distinta de cada uma das festas. Nenhuma é pior ou melhor do que a outra. Cada uma tem sua legitimidade enquanto manifestação da cultura de um povo. Para manter esses espaços e processos próprios o mais acertado seria a separação. E eu irei para as duas.

Os senhores(as) que recriaram o Sairé em 1973 não pensavam em fazer shows para os outros. Queriam apenas fazer festa, celebrar e brincar. Por isso se libertaram do controle e da proibição da Igreja. Ninguém tem o direito de colocar nova represa nesse rio. Deixa ele correr. Vamos deixar o Sairé em paz. Quem o preservou até aqui saberá como prosseguir, conservando e mudando as coisas quando entender necessário.

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(*) Professor de Sociologia na UFPa em Santarém e doutorando em Ciências Sociais/Antropologia na UFBa.

Comentários

Anônimo disse…
Olá Jeso, td bem? Tenho que concordar com o Frei Florêncio. Na minha monografia de conclusão do curso de design, abordei o tema Identidade Visual pra festa regional, e peguei a Festa do "Çairé", como objeto de estudo. No decorrer das minhas pesquisa, percebi justamente isso que o frei colocou. O Sairé, era a parte religiosa, não a disputa dos botos. O material que desenvolvi para a Divulgação do Evento, inclusive foi desenvolvido uma nova Marca, foi todo baseado no conceito religioso da festa, apenas dando uma ar mais moderno. Na minha proposta, eliminei da parte principal do evento a disputa dos botos, porque pelo que percebi não era isso que caracterizava a festa do Sairé.